Cooperativas de Trabalho: quando o homem não é o lobo do homem

Cooperativas de Trabalho: quando o homem não é o lobo do homem

Resumo: As cooperativas de trabalho são sociedades civis que exercem atividades econômicas sem finalidade lucrativa. Diferentemente das empresas tradicionais, os cooperados são ao mesmo tempo sócios e trabalhadores, compartilhando os custos e controlando a remuneração. Essas organizações surgiram como uma alternativa ao modelo de produção explorador, buscando promover relações de trabalho justas, empoderar os trabalhadores e construir uma sociedade mais equitativa e colaborativa. Por meio de princípios como adesão voluntária, gestão democrática, participação econômica dos membros e educação, as cooperativas de trabalho oferecem um modelo sustentável e humano de organização econômica, valorizando a dignidade do trabalho e garantindo benefícios financeiros e melhorias nas condições de trabalho para seus membros.

No início do semestre, fomos consultados acerca da regulação e constituição de uma Cooperativa de Trabalho. Como muitos sabem, a Sanfran Jr. presta serviços para entidades de segundo e terceiro setor. Contudo, possuíamos um único registro de trabalho com Cooperativas até então. Ademais, para estudantes que, como eu, iniciavam o segundo ano da graduação, o tema parecia ainda mais desafiador. A partir dessa experiência e dos aprendizados para a realização deste trabalho, compartilho o conhecimento adquirido com os leitores que desejem iniciar a compreensão da matéria. 

As cooperativas são sociedades civis que exercem atividades econômicas sem finalidade lucrativa. Com isto, é simples perceber, em teoria, o que as diferencia das Sociedades Empresárias, isto é, a ausência de objetivo lucrativo. Em contrapartida, as distinções em relação às associações podem ser um pouco mais nebulosas. Neste caso, essa diferenciação ainda tangencia a finalidade, mas em outro sentido: as associações são criadas para promover interesses comuns, compartilhar conhecimentos ou atingir objetivos específicos. Assim, os propósitos podem ser propósitos sociais, culturais, esportivos, educacionais, profissionais etc. As cooperativas, por sua vez, são criadas com o objetivo de atender às necessidades econômicas e sociais de seus membros, proporcionando benefícios financeiros e melhorias nas condições de trabalho.

Nessa linha, questionamento comum é: como as Cooperativas podem almejar resultados financeiros e, ao mesmo tempo, não apresentar finalidade lucrativa? 

No caso, é preciso entender que as cooperativas não apresentam finalidade lucrativa no sentido tradicional, ou seja, não visam a maximização dos ganhos financeiros e do retorno econômico aos acionistas, proprietários ou investidores em consequência da atividade dos empregados. 

Eis o ponto prático de distinção entre as Cooperativas e as Sociedades Empresárias: o cooperado é, concomitantemente, sócio e trabalhador. 

Imagine um grupo de motoristas de aplicativo que, insatisfeitos com as condições de trabalho e a baixa remuneração imposta pelas plataformas tradicionais, decidem formar uma cooperativa de transporte. Juntos, eles se organizam e estabelecem sua própria plataforma de transporte colaborativo. Nessa cooperativa, todos os motoristas são membros e proprietários do empreendimento. Eles compartilham os custos operacionais, como manutenção dos veículos, combustível e despesas administrativas, de forma equitativa. Ao invés de repassar uma porcentagem dos lucros para uma empresa intermediária, os motoristas têm o controle total sobre o valor que recebem pelo serviço prestado. Quando um passageiro solicita uma viagem por meio da plataforma da cooperativa, o motorista mais próximo pode aceitar a corrida. O preço cobrado pelo serviço é definido de forma transparente, levando em consideração os custos operacionais e garantindo uma remuneração justa ao motorista. Além disso, como os motoristas são donos da cooperativa, eles têm voz ativa nas decisões coletivas que afetam o funcionamento do serviço. Eles podem discutir e estabelecer políticas de segurança, condições de trabalho, estratégias de expansão e benefícios para os membros.

Ao contrário do modelo tradicional de transporte por aplicativo, onde as empresas intermediárias extraem uma parcela significativa dos lucros dos motoristas, a cooperativa de transporte garantiria que a remuneração fosse direcionada integralmente aos próprios trabalhadores. Dessa forma, os motoristas não são explorados, mas sim valorizados como parte fundamental do serviço prestado.

As raízes históricas deste modelo estão ligadas aos movimentos de trabalhadores e de solidariedade social que surgiram no século XIX, durante a Revolução Industrial na Europa. Com o crescimento do capitalismo industrial, muitos trabalhadores enfrentavam condições de trabalho desumanas, baixos salários e falta de proteção social. Diante dessas condições, surgiram iniciativas de autodefesa e solidariedade entre os trabalhadores, que buscavam melhorar suas condições de vida e trabalho.

O surgimento das cooperativas, como forma de organização econômica, foi influenciado por diversos movimentos sociais e teorias, destacando-se o movimento cooperativista de Rochdale, na Inglaterra, em 1844. Nesse contexto, um grupo de tecelões fundou a primeira cooperativa de consumo moderna, conhecida como “Sociedade dos Probos de Rochdale”. Essa iniciativa foi marcada pela adoção de princípios e valores cooperativistas, como a adesão voluntária, a gestão democrática e a distribuição equitativa dos resultados econômicos

O movimento cooperativista espalhou-se por diferentes países e setores da economia ao longo do século XIX e início do século XX. Cooperativas agrícolas, de crédito, de consumo, de trabalho e de serviços foram criadas para atender às necessidades e interesses dos membros, permitindo-lhes compartilhar recursos, conhecimentos e benefícios econômicos de forma colaborativa.

O panorama socioeconômico e histórico das cooperativas é abordado de maneira abrangente no artigo “Cooperativas, Empresas e a Disciplina Jurídica do Mercado” da Profª. Paula Forgioni. Neste estudo, Forgioni tangencia o potencial das cooperativas em coibir “naturalmente” o abuso do poder econômico, sem a necessidade de intervenção estatal. Esta coerção pode ser compreendida a partir de uma afirmação de Karl Polanyi, que ressalta “Se se deixasse a economia de mercado desenvolver-se de acordo com as suas próprias leis ela criaria grandes e permanentes males.” Quando as cooperativas subvertem a ordem de exploração através de um operário que também é proprietário, criam um poder de defesa “orgânico” contra o abuso do poder e coíbem, portanto, os males ressaltados por Polanyi.  Por meio da propriedade e da gestão coletiva, as cooperativas garantem que os frutos do trabalho sejam compartilhados de forma equitativa entre os membros. 

Nesse contexto, Forgioni complementa: “não é raro ouvir que, neste tipo de organização, ‘o homem não é o lobo do homem’”. As cooperativas oferecem uma alternativa saudável em relação ao modelo econômico predominante. Ao coibirem o abuso do poder econômico, promovem relações de trabalho mais justas, empoderam os trabalhadores e contribuem para a construção de uma sociedade mais equitativa e colaborativa. 

A Lei 5.764/71 regula as atividades das Cooperativas e estabelece dispositivos muito característicos desse tipo de sociedade. A seguir, acompanhe os fundamentos principais: 

  1. Adesão Voluntária e Livre

Este princípio permite que qualquer pessoa que possa utilizar os serviços da cooperativa e esteja disposta a assumir as responsabilidades de membro possa participar, sem discriminação.

  1. Gestão democrática

Assegura que as cooperativas sejam administradas de forma democrática, onde cada membro tem igualdade de participação e influência nas decisões por meio do princípio “one man, one vote”.

  1. Participação econômica dos membros

Os membros contribuem para o capital e compartilham equitativamente nos resultados econômicos gerados, de acordo com a sua participação nas atividades cooperativas. 

  1. Educação e formação

Estes princípios são promovidos pelas cooperativas, visando ao desenvolvimento conjunto dos membros, funcionários e comunidade, além de estimular a conscientização cooperativista.

A Constituição Federal de 1988 reconhece a importância do cooperativismo como um modelo de organização econômica e social, dedicando-lhe um espaço específico. O incentivo ao cooperativismo está presente em diversos dispositivos constitucionais, que valorizam e promovem as cooperativas como uma forma de fortalecer a participação e a autonomia dos cidadãos na economia.

Entretanto, mesmo nas formações jurídicas, as cooperativas são frequentemente negligenciadas e pouco abordadas (como acontece com as instituições de terceiro setor, em geral). A disseminação deste conhecimento pode abrir caminho para uma mudança significativa na forma como enxergamos e estruturamos as atividades econômicas. É importante que o potencial dessas sociedades em promover relações de trabalho mais justas, empoderar trabalhadores e contribuir para a construção de uma sociedade mais equitativa e colaborativa seja conhecido e desfrutado. 

Escrito por: Letícia Veloso

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