DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: EVOLUÇÃO DAS HIPÓTESES E PERSPECTIVAS DE APLICAÇÃO

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: EVOLUÇÃO DAS HIPÓTESES E PERSPECTIVAS DE APLICAÇÃO

Resumo: É clara a percepção de que a aquisição de personalidade jurídica, fundamentalmente, deve estar alinhada com certas exigências inerentes à própria noção de pessoa jurídica, dotada de autonomia enquanto potencial sujeito de relações jurídicas próprias e detentora de patrimônio separado. Compreender, contudo, quais critérios jurídicos se prestam a fornecer um efetivo parâmetro de aferição dos pressupostos de legitimidade da personalidade jurídica implica uma investigação acerca dos muitos entendimentos sobre o assunto. Dessa maneira, o artigo se volta a apresentar e analisar os critérios e hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica para fins de responsabilização no contexto jurídico brasileiro, bem como seus fundamentos e perspectivas teóricas.

  1. Pessoa Jurídica: Conceito e Natureza

Essencialmente, a personalidade jurídica trata da possibilidade de aquisição de direitos e deveres. Embora essa concepção, aliada à noção de capacidade jurídica, fosse, ao longo de muito tempo, aplicada somente às pessoas naturais, a complexificação da realidade concreta  implicou a extensão da capacidade a grupos de pessoas com objetivos correlatos.

 A pessoa jurídica, portanto, pode ser composta por uma destinação patrimonial ou por pluralidade de pessoas com a aptidão de contrair obrigações e adquirir direitos (Pereira, 2020). Essa pluralidade de indivíduos, contudo, deve ser dotada de unidade sistemática, de modo que a personificação representa o surgimento de pessoa apartada, com uma vontade e finalidade separada e definida,  e não a junção das vontades de seus integrantes. Tendo em vista o assunto, surgiram teorias que buscaram interpretar a existência das pessoas jurídicas, de modo a se debruçar sobre a natureza jurídica desse fenômeno tão importante.

As teorias da ficção, desenvolvidas no bojo do século XIX, especialmente representadas pela teoria da “ficção legal”, desenvolvida por Savigny, postulavam que a pessoa jurídica é, essencialmente, uma criação artificial, de modo que o ato de conferir capacidade jurídica a um grupo de pessoas seria, na realidade, uma ficção jurídica, para fins patrimoniais e econômicos. Essa teoria não vingou ao longo do tempo e atualmente não é aceita. Por outro lado, as teorias realistas buscavam demonstrar que as pessoas jurídicas não eram meras abstrações, mas pessoas dotadas de verdadeira personalidade na realidade concreta, de modo que, nessa perspectiva, venceu a “teoria da realidade técnica”, que entende que o Estado, convenientemente, admite a concessão de personalidade aos grupos com vontade distinta das individuais dos membros, patrimônio separado e capacidade limitada ao alcance de seus fins.

Assim, a conclusão última e mais relevante, em termos práticos, de todos os debates travados, inevitavelmente, é a de completa separação patrimonial, cristalizada no brocardo societas distat a singulis. Essa lógica, em última análise, presta-se a fomentar a atividade econômica, na medida em que busca mitigar os riscos daqueles que se propõem a estabelecer determinada pessoa jurídica, já que seus patrimônios pessoais não poderiam ser alcançados, em casos críticos. Naturalmente, há exceções, dado que a utilização irrestrita da concessão de personalidade jurídica geraria incontáveis riscos ao bom funcionamento da ordem jurídico-econômica. Para tanto, delineou-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 

  1. O caminho histórico da teoria da desconsideração da personalidade jurídica

O início do desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica se deu em contexto de Common Law, com casos emblemáticos da jurisprudência inglesa e norte-americana, sob a forma do que se intitulou disregard doctrine. A sistematização da teoria em si, por outro lado, se deu a partir de esforços alemães (Salomão Filho, 2015). No Brasil, foi  Rubens Requião o responsável por trazer à tona a problematização de um tratamento dogmático e irrestrito da separação patrimonial das sociedades personalizadas, embora já houvesse encontrado aplicação da lógica da desconsideração da personalidade jurídica em julgados específicos. 

Dessa maneira, avançou, nos horizontes brasileiros, o processo de desenvolvimento de uma teoria acerca da desconsideração da personalidade jurídica. Durante determinado período, contudo, o fenômeno se inseria na categoria do abuso de direito, tendo em vista o fato de que não havia categoria jurídica autônoma para a desconsideração da personalidade jurídica (Frazão, 2012). Posteriormente, a teoria foi abarcada pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo alvo de diversas críticas doutrinárias, até que se inserisse no âmbito do Código Civil de 2002, especificamente no Art. 50, tendo sofrido leve alteração pela Lei nº. 13.874/2019, intitulada Lei de Liberdade Econômica.

A expressão inglesa lifting the corporate veil sinaliza, de forma clara e didática sobre o que se trata a desconsideração da personalidade jurídica. O fenômeno trata da possibilidade momentânea e concreta de “levantar o véu” da personalidade da pessoa jurídica para que o patrimônio de seus sócios ou administradores seja alcançado em determinados casos de abuso. A ponderação acerca das hipóteses em que se considera válida a aplicação do instituto, contudo, é uma área espinhosa. 

Atualmente, na doutrina brasileira, vigora o entendimento de que a desconsideração da personalidade pode encontrar suporte teórico de aplicação em duas grandes teorias (i) Teoria Maior e (ii) Teoria Menor, que serão exploradas adiante. 

  1. Teoria Maior 

A teoria maior tem como fonte e fundamento o Art. 50 do CC/2002, a Lei Anticorrupção e a Lei de Licitações. O artigo presente no Código Civil é de grande importância para delimitar certas hipóteses do que se considera o abuso da personalidade jurídica:

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§ 1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. 

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: 

I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; 

II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e 

III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. 

§ 3º  O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. 

§ 4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§ 5º  Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.

Depreende-se do texto da lei que dois são os fundamentos que legitimam a desconsideração da personalidade jurídica: (i) desvio de finalidade e (ii) confusão patrimonial. Dados esses fundamentos, a doutrina subdivide a teoria maior em: teoria maior objetiva e teoria maior subjetiva.

A teoria maior objetiva postula que a confusão patrimonial é o pressuposto fundamental para que haja desconsideração. Parte da doutrina, chefiada por Fábio Konder Comparato, adota esse posicionamento, ao passo que outra parte significativa, como Marlon Tomazette, por outro lado, pensa ser um critério insuficiente para que efetivamente se verifique hipótese em que se deva aplicar a ferramenta ofertada pelo Art.50. A teoria maior subjetiva, por seu turno, alega que o desvio de finalidade – traduzida essencialmente na fraude – é o fundamento primordial para que ocorra desconsideração.

  1. Teoria Menor

A teoria menor é fundamentalmente representada pelo  § 5° do Art. 28 do Código de Defesa ao Consumidor. 

 Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

    § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Nesse viés, para que se desconsidere a personalidade jurídica, basta que a pessoa jurídica seja obstáculo ao ressarcimento do prejuízo. O mero inadimplemento, portanto, seria justificativa para a desconsideração. Essa teoria se aplica em 3 âmbitos: no direito do consumidor, no direito ambiental e na distribuição de combustíveis. Especificamente no caso de distribuição de combustíveis, a Lei 9847/99, no § 3º do Art. 18 disciplina o assunto:

Art. 18. Os fornecedores e transportadores de petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade, inclusive aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem ou rotulagem, que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor.   

§ 3o  Poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade sempre que esta constituir obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao abastecimento nacional de combustíveis ou ao Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis.

  1. Visões doutrinárias e jurisprudenciais contemporâneas

Naturalmente, a aplicação de um instituto repleto de nuances e especificidades gera amplas situações de discordâncias e debates doutrinários, bem como diversas visões jurisprudenciais que lapidam a maneira a partir da qual a desconsideração da personalidade jurídica é enxergada na contemporaneidade.

Significativa parte da doutrina acredita que a teoria menor não está alinhada com a própria natureza da pessoa jurídica, enquanto ente detentor de separação patrimonial. Isso porque, para a aplicação da teoria, não é exigida confusão patrimonial ou desvio de finalidade, mas a mera situação de inadimplemento. O STJ entendeu dessa maneira no Recurso Especial de nº 279273/SP. O que os defensores desta teoria postulam é que se trata, na realidade, de uma forma de construir um contexto favorável ao consumidor, bem como ao meio ambiente. O Agravo de Instrumento 1401416-86.2015.8.12.0000/MS, nessa perspectiva, comprova utilização da teoria menor em casos ambientais. Tanto Tomazette quanto Oksandro Gonçalves (Gonçalves, 2004) são defensores da ideia de que a interpretação do parágrafo 5º deve se dar de maneira a considerar a natureza mesma da pessoa jurídica, sem que se estabeleça uma aplicação injusta e contraditória do instituto. Não deve, portanto, o mero prejuízo ensejar a desconsideração, mas deve-se, na realidade, empreender uma análise sistemática a partir da qual a própria noção de pessoa jurídica não se esvaia no contexto consumerista. 

Outro debate doutrinário é o que diz respeito à necessidade ou desnecessidade da insolvência para que se aplique a desconsideração da personalidade jurídica. O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial de nº 1141447/SP, entendeu pela necessidade da insolvência. Entretanto, parte da doutrina entende ser a insolvência não somente desnecessária, mas, ainda, disfuncional no sentido de que se contrapõe à própria noção da pessoa jurídica. A insolvência pode ser considerada parte de um processo de dissolução, de modo que, tomando esse fato como pressuposto, advogar pela desconsideração da personalidade jurídica no meio de sua própria dissolução seria pouco razoável. Essa é uma posição adotada por Marlon Tomazette (Tomazette, 2017)

Um ponto de significativa relevância no assunto, ademais, é a intitulada “desconsideração inversa da personalidade jurídica”, que, como induz a nomenclatura, diz respeito à possibilidade de atingimento do patrimônio da pessoa jurídica devido à má utilização da PJ por parte dos sócios ou administradores. Trata-se de uma lógica, de fato inversa, mas que encontra substrato teórico na mesma ideia do instituto tradicional, que é a preservação da utilização idônea da pessoa jurídica. Naturalmente, o “novo” instituto também é alvo de críticas e, parte da doutrina, pensa ser mais eficiente a declaração de nulidade do negócio jurídico que transferiu bens dos dos sócios para a pessoa jurídica.  

6. Conclusão

Em suma, é perceptível que o tema da desconsideração da personalidade jurídica é de significativa complexidade, com especificidades que merecem ser debatidas e estudadas. Como visto ao longo do artigo, as visões jurisprudenciais e doutrinárias frequentemente se contrapõem, de modo que compreender o assunto também implica se debruçar sobre as múltiplas perspectivas, com o objetivo de compreendê-las e de fomentar o conhecimento.

7. Referências Bibliográficas

BRASIL, Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul – TJMS, 1º Câmara Cível. Agravo de Instrumento 1401416-86.2015.8.12.0000/MS. Relator Des. Divoncir Schreiner Maran. Publicação no Diário da Justiça de 06.07.2015

FRAZÂO, Ana. Desconsideração da Personalidade Jurídica e Tutela de Credores. In: COELHO, Fábio Ulhoa;  RIBEIRO, Maria de Fátima (Org.). Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil. Coimbra: Almedina, 2012. p. 485.

GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. Curitiba: Juruá, 2004, p. 105.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil, Teoria Geral do Direito Civil, Volume I – 33. ed – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 4º ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 234

STJ – REsp 279273/SP, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 4/12/2003, DJe 29/3/2004, p. 230.

STJ – REsp 1141447/SP, Rel Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 8/2/2011, DJe 5/4/2011.

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário, v. 1.  8. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2017. p.328

Autor: Gabriel Tavares Silva

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